segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Poema de Júlio Saraiva

Poema Russo


pega o que esqueci de mim maria
e despacha no primeiro avião
tenho encontro em moscou
com um cego ex-bolchevique
que hoje vive de tocar balalaica nos bares
a troco de um prato de sopa de beterraba
e algumas doses de vodca que o fazem feliz

nunca vi este homem na vida
mas sei que ficou louco pela causa do partido
quando não toca balalaica declama maiakóvski:
"Iech ananáci, riábtchicov juí,
Diench tvoi posliédníí prihodit, burjuí.(*)"

quando não toca balalaica e nem declama maiakóvski
vai à catedral de são petersburgo
passeia o olhar miúdo pelos ícones e reza
pelo descanso da alma do czar nicolau II
o que é estranho por tratar-se de um ex-bolchevique

pega o que esqueci de mim maria
e despacha no primeiro avião
o cego me espera com sua balalaica
imagino que em moscou os dias sejam cinzentos e tristes
imagino que em moscou as mulheres sejam altas e tristes
com imensos olhos azuis contrastando com o cinza das manhãs

contemplarei as águas do volga com tristeza
(talvez eu chore um pouco)
e perguntarei por anna akhmátova
cujo marido foi fuzilado a mando de stalin

pega o que esqueci de mim maria
e despacha no primeiro avião
não esquece de juntar entre os trastes
a inútil poesia que escrevi
durante trinta anos da minha vida também inútil
talvez o cego se interesse pelos meus versos
caso eu não volte é porque morri
de frio
de tédio
ou destas longas ausências de mim

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(*) "Come ananás, mastiga perdiz,
Teu dia está prestes, burguês."
(tradução de Augusto de Campos)

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