Ainda criança, comecei a veranear em Pirangi do Sul. Meus avós começaram a freqüentar aquele litoral bem antes, ainda nos anos 40. Naquele tempo meu, a estrada ainda era de terra e passava ao lado do cajueiro gigante de Pirangi do Norte. Que ainda não era tido oficialmente como o maior do mundo. Embora para nós crianças, já fosse o maior de todos.
A estradinha bucólica passava entra as casas de verão e terrenos inundados com a mata nativa. E o cajueiro tava lá no meio como um destaque alegórico. Assim, íamos nós, todos os anos veranear. A temporada geralmente ia do mês de dezembro até fevereiro.
Éramos crianças cheias de ansiedade. Irmãos, primos, amigos. Todos loucos para chegar logo na casa de praia e se soltar na beira-mar. Pescar nos arrecifes ou na baixinha. Correr morros. Comer araçá, maria-preta, ameixa do mato, mangaba e caju. Frutinhos da mata atlântica. Tomar banhos nas lagoas. Pegar caranguejos no mangue por trás de casa. Nadar no rio, pular da ponte velha na maré cheia. A ponte tinha pilastras de concreto e piso de madeira. Nela, não passava automóveis, apenas pedestres e carros de mão. A aventura de atravessar o rio e ir pegar cajus no cajueiro grande de Pirangi do Norte também era parte da nossa programação.
Depois, já adolescente, pavimentaram a estrada com paralelepípedo (ô palavrinha complicada), no trecho entre Ponta Negra e Pirangi do Norte. O calçamento acabava na ponte do rio Pium/Pirangi, que dividia os dois lugarejos. A ponte agora era outra, dava passagem aos carros. Essa estrada de calçamento seguiu a velha trilha, passando ao largo do cajueiro gigante. E tudo estava muito bem. Agora o lance era namorar sob as folhagens do velho cajueiro. A frondosa copa a sombrear os primeiros amores.
O povoado de Pirangi do Norte se enquadrava nos arrabaldes da Igrejinha de São Sebastião. Mas Pirangi do Norte já era uma praia desenvolta. Tinha o Clube dos Veranistas na beira-mar. Tinha o Clube dos Pescadores do lado da pracinha. A festa do padroeiro era mais agitada, embora não mais interessante que a de Santos Reis, no outro lado do rio. A tradicional pelada dos veranistas e pescadores de Pirangi do Norte contra o Pirangi do Sul. Rivalidade ferrenha que juntava as torcidas e acalorava os ânimos. Lances do verão.
A pavimentação da estrada trouxe mais movimento. Natural. Os pic-nics dominicais aumentaram. Novos veranistas foram chegando ao Pirangi do Norte, cuja área tinha uma geografia mais habitável. Começaram a surgirem as primeiras cercas. Os terrenos postos à venda. Os loteamentos. As novas casas. A terra foi sendo ocupada. Ocupação aleatória, no mais das vezes, irregular. Cercaram o cajueiro gigante. Uma cerca simples ainda, de pau e arame farpado. Era a primeira intervenção.
Em pouco tempo Pirangi do Norte se transformou numa praia badalada. A mais badalada do litoral sul. Ainda hoje, conserva seu charme. Embora divida o glamour com a praia da Pipa, em Tibau do Sul. Novas ruas foram abertas para dar acesso às novas moradias de verão. Para dar fluxo ao trânsito, cada vez maior. Então fizeram uma estrada na lateral oeste do cajueiro. Outra na lateral sul. Passaram o asfalto. Delimitaram o cajueiro nos quatro cantos. Uma cerca bacana, de tela com estacas de cimento, patrocinada pela prefeitura. Para acolher os turistas, construíram uma praça com lojinhas e quiosques de alimentos. E para ter acesso ao cajueiro tinha que pagar. Era o progresso definitivamente.
Pronto, dali em diante o cajueiro deveria crescer dentro dos seus limites. Não deveria ultrapassar a cerca, invadir a estrada, atrapalhar o trânsito. Como tudo na vida tem limite, o cajueiro gigante – agora já sendo o maior cajueiro do mundo – também teria o seu.
Mas a vida extrapola o script. O cajueiro foi crescendo. Os galhos que não entendem de limites, avançaram sobre a cerca. Adentraram as estradas. Atrapalhou o trânsito. A prefeitura, que antes cercara a árvore, agora pressionada pelos defensores do meio ambiente, permitiu o avanço da galhada. Partes das ruas foram interditadas com blocos de cimento. A pista afunilou. Antes com duas vias, as avenidas passaram a ter só uma mão. Então o inferno desceu a terra. Com o gargalo vieram os engarrafamentos, sobretudo nos finais de semana e durante o verão. O transito virou um caos. Acabou-se o danado do fluxo automobilístico.
Estava instalado o problema. Discussão para lá. Discussão para cá. Ecologistas de plantão acham que não deve podar. Homens práticos entendem que pode sim. Uma discussão meio estéril que vem se arrastando há vários anos, sem que haja uma solução concreta. Uma montanha de blá-blá-blá.
Acho que na verdade construíram um cercadinho muito pequeno para abrigar o cajueiro gigante. O certo mesmo era ter deixado uma área maior de preservação ambiental para que a árvore pudesse crescer a vontade. Sempre tive esse sentimento. Porém prevaleceram os interesses do capital à época, decidiram pela limitação do cajueiro. Aquela história: da grana que ergue e destrói coisas belas, de uma antiga composição de Caetano Veloso. Agora o mal está feito. O século é 21. A civilização avança.
A poda é um procedimento natural na agronomia. Um meio de conduzir a planta, sem comprometer a sanidade e qualidade dos frutos. Simples tecnologia agrícola. Resta saber se mantido nos seus limites, o cajueiro continuará sendo “O Maior do Mundo” ou seu trono estaria ameaçado? Caso continue sendo detentor do portentoso título concedido pelo Guiness Book, não vejo mal nenhum em fazer a poda racional.
Caso contrário, o melhor é indenizar as residências próximas. Derrubar as construções e devolver a terra à natureza. Fazer a estrada noutro lugar.
Agora, ficar amarrado num sentimentalismo debilóide é que não dá mais para agüentar. Um puxa e encolhe sem conteúdo nenhum. Todo ano a mesma ladainha. Enche o saco. E nada se resolve.
Ótimo texto e eu de Pirangi do Norte, sempre tive a sorte de ter logo ao lado Pirangi do Sul, a ponte que sempre nos uniu, a ponte velha e nova, de madeira, concreta e metafórica, meta-eufórica a ponte que é ponte, esse texto que é ponte e aponta, a poesia que é ponte, e o rock and roll, o Salesiano que é ponte, Petrópolis-Tirol que é ponte, Délio que é ponte e rio-mar garrafa solta no oceano amigo em comum tão especial, o oeste que é ponte, Mossoró e Ponta do Mel, agora estou veraneando em Pirambúzios que é ponte, o passado-presente-futuro que é ponte, o passado pré-sente o futuro, a saudade que é ponte e me faz lembrar da antológica pelada e de tudo que você falou no seu texto, ontem vi um cara parecido com você com um bebê no colo na beira-mar em Pirangi do Sul no tempo que é ponte, chuva e sol, o casamento da rapousa com o rouxinol... E quando eu perambulava pela rua onde um dia foi o bar do rio, voltando pra casa eu gostava de lembrar o poeta Paulinho Procópio: "em cada poste tem uma lua"...
ResponderExcluir