sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Canção Urbana

Luís Carlos Guimarães

O que me chama atenção é um homem sozinho numa mesa
nos seus cinqüenta anos bem morridos,
a entornar seu chope silenciosamente,
o homem do paletó cor de goiaba.
Necessariamente funcionário público
às vizinhanças da obesidade e do enfarte,
o homem de paletó cor de goiaba
tem cinco filhos, três netos,
uma mulher de barriga caída e varizes nos braços e nas pernas,
um apartamento de dois quartos no 12º andar do Edifício Flor das Laranjeiras
(financiado em 25 anos, com correção monetária, pelo BNF),
calos na sola do pé direito,
dentes cariados,
fígado inchado,
acessos semanais de asma brônquica,
uma sogra que encarna o dragão vomitador de fogo,
uma acentuada hipermetropia na visão esquerda
e bolsos furados.

E mais:
no morrer de cada dia,
o homem do paletó cor de goiaba
tem os ouvidos rasgados pelo barulho do trânsito,
seu sangue poluído de asfalto na repartição,
nas filas de ônibus e do INPS.
Entornando silenciosamente o seu chope,
o homem do paletó cor de goiaba
parece um boi.
Um boi.
Não o boi que pasta no campo,
mas o boi que vão levando ao matadouro.


*Do livro: "Ponto de Fuga", Ed. Clima-FJA, 1979, RN.

Nenhum comentário:

Postar um comentário