As edições Sebo Vermelho prepara mais uma edição de bom gosto, o livro Memória Viva com a entrevista o médico e velho comunista Vulpiano Cavancanti, concedida tempos atrás à TVU. Muito oportuno.
Doutor Vulpiano foi um símbolo de retidão humana, que jamais traiu seus
ideais e a sua verdade interior. Lembro dele já chegando à tenra idade na
cadeira de balanço no terraço de sua casa irradiando a placidez, na mesma rua
que eu morava. Era menino e meus avós me contavam a sua saga de bondade e
torturas. Era para mim uma espécie de mito.
O texto que se segue, escrito pelo jornalista de estilo, Dorian Jorge
Freire, é servido como aperitivo:
Vulpiano
Cavalcanti, um homem de aço
Natal, dezembro de 1988
Natal, dezembro de 1988
Vulpiano Cavalcanti apareceu em Mossoró, vindo de Areia Branca, onde conquistara, em brevíssimo tempo, fama de grande médico, de milagroso cirurgião, de amigo dos pobres. E de comunista.Conheci-o apresentado pelo advogado Raimundo Soares de Souza, futuro deputado federal, prefeito de Mossoró e criador da Universidade mossoroense.
Fizemos
pronta camaradagem. Eu era ainda muito moço, quase menino. Vulpiano me ouvia
com condescendência, fazia proselitismo. Discutíamos idéias. Ele,
evidentemente, muito mais preparado, muito mais treinado para os debates nas
saudades mesas dos desaparecidos - por quê? - cafés da cidade.
Achava-me
por demais preconceituoso, embora eu quisesse mostrar abertura a qualquer
idéia. Recordo que foi dele que recebi o livro de Roger Martin du Gard, O Drama
de Jean Barois. Na dedicatória, notavelmente irônica, ele dizia que aquele era
também o meu "drama".
Amistamos enquanto ele viveu em Mossoró, com um prestígio em grande ascensão.Depois, mais raramente, nos vimos em Natal. Creio que não me encontrava com ele há uns bons 30 anos. O tímido irrecuperável não se encorajava a ir interrompê-lo na sua faina e impor-lhe uma amizade que ficou na adolescência de flores, quimeras e palavras de ordem.
Amistamos enquanto ele viveu em Mossoró, com um prestígio em grande ascensão.Depois, mais raramente, nos vimos em Natal. Creio que não me encontrava com ele há uns bons 30 anos. O tímido irrecuperável não se encorajava a ir interrompê-lo na sua faina e impor-lhe uma amizade que ficou na adolescência de flores, quimeras e palavras de ordem.
Acompanhei,
contudo, a sua vida, muito rica e aventurosa, com curiosidade. Vi-o chamado
pela grande imprensa de representante de Luís Carlos Prestes no Nordeste. Soube
de suas inumeráveis prisões. Não no autoritarismo que sucedeu ao golpe militar
de 1964. Antes dele. No governo falsamente democrático do marechal Eurico
Gaspar Dutra. Até no qüinqüênio liberal de Juscelino Kubitsckek. Era preso e,
invariavelmente, torturado. Surravam preferencialmente as suas mãos mágicas,
seus dedos hábeis, para que não voltasse a ser o exímio cirurgião que sempre
foi.
Uma vez,
ouvi de Luiz Maranhão Filho, que foi "desaparecido" no reinado dos
atos institucionais hoje recordados com saudade pelo coronel Jarbas Passarinho,
falso cristão novo da nossa tíbia democracia, ouvi de Luiz, o grande e saudoso
Lula, que está carecendo receber a homenagem de respeito e de saudade do Rio
Grande do Norte, como Vulpiano se comportava nas prisões. Não perdia o humor,
brincava com os companheiros de cativeiro, gozava os algozes. Submetido a
torturas terríveis, inimagináveis, ferozes, Luiz me dizia que todos presos
falavam alguma coisa, inventavam alguma coisa para despistar e atender à
ferocidade dos torturadores.
- Menos
Vulpiano. Ele não diz nada. Não tenta nem despistar. Recusa-se a falar. Ironiza
os bichos da tortura e continua, placidamente, reiterando suas idéias. Um
monstro!
Pois foi o
monstro sagrado que agora morreu. No seu Ceará. Longe da cidade do Natal de sua
eleição. Deixando atrás dele um prestígio que nunca diminuiu. De homem de
idéias firmes, inabaláveis. De homem de aço. E, no entanto, um homem
visceralmente simples, compreensivo, bom. Amigo de todos. Até dos adversários
mais impiedosos. Sempre risonho, afável, mobilizado. Médico e comunista. A
profissão e sua opção política se completavam, se entrelaçavam. Um
revolucionário sem ferocidade, meigo, atencioso, muito educado.
Os últimos
anos de vida de Vulpiano Cavalcanti foram de consagração. Não havia duas
opiniões sobre ele. Natal que desbota, desgasta, mediocriza, não consagra nem
desconsagra ninguém, segundo frase ora atribuída a Câmara Cascudo, ora a João
Medeiros Filho, consagrou Vulpiano Cavalcanti. Concedeu-lhe o respeito que ele
merecia e a estima da qual era credor.
Sem precisar renunciar às suas verdades, sustentando-as com o ardor da distante mocidade, Vulpiano Cavalcanti, assim mesmo, por isso mesmo, era amado.
Sem precisar renunciar às suas verdades, sustentando-as com o ardor da distante mocidade, Vulpiano Cavalcanti, assim mesmo, por isso mesmo, era amado.
Morto
Vulpiano, "desaparecido" Luiz Maranhão Filho, ser comunista, em
Natal, perdeu a graça.
Dorian Jorge Freire.
Jornal O Mossoroense
Dorian Jorge Freire.
Jornal O Mossoroense
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